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Quando entrei no jornalismo agrícola, a piada vigente sobre as ajudas comunitárias aos cereais era o ‘serial killer’ (na altura, a produção de cereais era o triplo da que temos atualmente).
Sempre entendi a manutenção de área produtiva de cereais como absolutamente estratégica para o país. Mas nunca concordei com produções ineficientes e sem mercado só para fazer número nas estatísticas.
A produção de cereais tem de ser encarada como fundamental para a estrutura produtiva. Representa a base da cadeia alimentar e não existem razões válidas que justifiquem o baixíssimo nível de autoaprovisonamento que hoje enfrentamos. Produzir 6% do trigo que consumimos é vergonhoso para todos mas, sobretudo, para os consumidores que não têm noção da origem dos cereais do pão que consomem todos os dias.
Muito deste afastamento entre a produção, a indústria e a distribuição passa por falta de vontade em construir parcerias. E aqui, claramente, são as pessoas que fazem a diferença nos poucos, mas bons, projetos que constituem a exceção neste panorama.
Recordemos um clássico: se hoje bebemos cerveja com malte nacional isso deve-se a um desafio da indústria cervejeira para que os produtores investissem na qualidade dos lotes de cevada dística. E aqui honra seja feita ao papel de Patrícia Cotrim, durante anos gestora de operações na Maltibérica, que ‘evangelizou’ um grupo de produtores que em meia dúzia de anos justificaram em pleno a aposta na cevada nacional, com produções homogéneas e de alta qualidade. Porque é que este exemplo não foi replicado por outras agroindústrias é algo incompreensível. Mas a verdade nada aconteceu de relevante.
Mais recentemente, a prova de que quando queremos fazemos acontecer chama-se ‘pão de cereais alentejano’. Partiu de uma conversa de um nome grande da agricultura nacional, Fernando Carpinteiro Albino, com Ondina Afonso, presidente do Clube de Produtores Continente sobre a possibilidade de ter pão com cereais alentejanos nos supermercados. Em cinco meses era uma realidade. E mais, a cadeia envolvida, panificadores incluídos, elogia a qualidade da farinha de cereais nacionais. E pergunto: há alguma razão para isto não ter acontecido mais cedo? A verdade é que um ano depois uma segunda cadeia da grande distribuição também anuncia a comercialização de pão de cereais portugueses. E outras se seguirão, tenho a certeza. Porque o desbloqueio foi feito e os mitos sobre a falta de qualidade/homogeneidade dos cereais portugueses desfeito.
É imperativo não deixar cair esta dinâmica e continuar a trabalhar neste sentido: parcerias estratégicas, produção organizada, trabalhar com foco mas, sobretudo, querer. E nesse ponto, ou queremos, ou não…