Augusto Gouveia é docente do ensino superior e doutorado na área da Fisiologia Animal. Nos últimos 4 anos tem desenvolvido actividade no Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária onde tem desempenhado entre outras funções, a de Investigador no âmbito da Neurologia Comportamental em touros de lide, com trabalhos publicados em revistas científicas da especialidade.
Porquê investigar o touro de lide?
O bovino da Raça Brava de Lide é um expoente de agressividade condicionada, a qual apresenta especial particularidade de ser repetitiva, por vezes até à exaustão, animal mítico e selvagem é de difícil abordagem, talvez por isso, raramente estudado. O touro de lide tem atitudes “sui generis” únicas na Zoologia, com investidas inatas. É um animal que merece ser estudado como outro qualquer.
A propósito deixe-me dizer-lhe que as investigações que tenho levado a cabo não têm custado um cêntimo ao erário público, têm sido financiadas por privados e já agora, também lhe digo que as mesmas não tomam partido na discussão pró-taurina ou anti-taurina, são investigações isentas e puras.
E sobre a agressividade de que falou, existem dados conclusivos sobre a sua origem?
Bem, do ponto de vista genético, sobre a predominância de comportamentos agressivos não há consenso acerca da existência de genes para a agressão e sobre doenças genéticas que apresentam a agressividade como característica patognomónica. Contudo, é certo que as causas são múltiplas, sejam as externas como a territorialidade, a reprodução e a alimentação e as internas, nomeadamente as neuroendócrinas e as estruturas cerebrais, ambas para a sobrevivência da espécie. E é sobre estas causas internas que me tenho debruçado.
Pode concretizar?
Conduzi um estudo de parametrização do encéfalo e da amígdala cerebral em bovinos de Raça Brava de Lide (RBL), em comparação com Bovinos Produtores de Carne (BPC), que teve por objetivo verificar a existência de uma putativa e possível associação do tamanho da amígdala cerebral e o comportamento agressivo manifestado pelos touros de lide.
Assim, observaram-se diferenças significativas nos hemisférios cerebrais, quer ao nível dos polos frontais quer na convexidade da superfície dorsal, evidenciando os bovinos RBL uma estrutura mais estreita daqueles polos (Figs.1 e 2) e um adelgaçamento do córtex cerebral que pode justificar essa superfície menos convexa. No que tange as áreas das amígdalas cerebrais, estas evidenciaram menores dimensões na RBL (Fig. 3), de uma forma estatisticamente muito significativa, quando comparada com as dos BPC. Se considerarmos para os BPC a média de uma amígdala de base 1, então teríamos para a RBL uma amígdala 42 % menor. Na RBL, também se verificou uma relação negativa muito proeminente e significativa entre a dimensão da amígdala e a agressividade. Esta afirmação tem por base o comportamento observado durante a lide dos touros identificados na amostra, dos quais se deduziu uma clara separação entre touros com adequada aptidão para a lide (amígdalas <0,5 cm2) e aqueles cujo comportamento foi improprio para a lide (amígdalas > 0,8 cm2) devido a atitudes de manso. Embora não seja possível estabelecer um paralelismo com os vários estudos desenvolvidos em humanos, que aliam uma menor dimensão da amígdala cerebral ao incremento da violência, não deixa de ser significativa a similaridade observada na Raça Brava de Lide.
Figura 2 – Conformação arredondada
Figura 1- Polos frontais estreitos
Figura 3- Visualização das amígdalas cerebrais nos dois hemisférios cerebrais
É de referir também que a média dos pesos dos cérebros é de cerca de 350 gr para a RBL e de 428 gr para os BPC, atribuível ao desenvolvimento do córtex.
É de facto curiosa a inter-relação que estabeleceu mas, e a repetibilidade das investidas, a que se deve?
O que referi faz parte de um quadro alargado de circunstâncias que intrinsecamente promovem a agressividade, falei apenas de uma estrutura. Não é de menor importância por exemplo a menor altura do córtex cerebral, nomeadamente ao nível dos polos Frontais com uma altura média de apenas 10,7 mm e isto é importante porque existe uma directa associação com comportamentos agressivos.
Sobre a repetição das investidas, fala-se de um touro sem memória, eu não diria tanto mas, pode haver um leve fundo de verdade já que num outro estudo foi abordado o hipocampo que interage com a amígdala cerebral e onde se constatou que os animais classificados com comportamento de maior bravura tinham um hipocampo menor que 29,7 mm2. Ora, é conhecida a função do hipocampo na conversão da memória de curto prazo, em memória de longo prazo no lobo temporal do cérebro que basicamente tem a ver com a aprendizagem e a gestão da memória. Pode ser lícito pensar que hipocampos pequenos não retêm eficazmente a memória de curto prazo, isto é, o animal pode “esquecer-se“ do que ocorreu imediatamente antes, talvez isto possa ser um contributo para entender a incrível repetibilidade das investidas.
Referiu a agressividade e uma possível explicação para a repetição da investida que pode caracterizar a bravura se não a Casta. Onde se encaixa a testosterona na bravura?
Ah! Hormonas, sim claro, lembre-se que no início desta conversa falei do sistema neuroendócrino, que é fundamental para a sobrevivência das espécies e, permita-me recordar que também, os estudos sobre as inter-relações endocrinológicas em bovinos da Raça Brava de Lide são raros, permanecendo ainda incompreendidos todos os mecanismos que concorrem para a sua agressividade. Contudo, diversos autores de medicina humana referem um balanceamento muito curioso que refere que, para um colesterol baixo, correspondendo a uma testosterona alta com consequente subida da hormona antidiurética (ADH), se pode correlacionar com um aumento de agressividade. Por isso, também foi conduzido um estudo para corroborar ou não, se tal situação se verificava nos touros de lide e sobre que valores estaríamos a falar. Apenas lhe posso confirmar que de facto existem níveis de testosterona bastante elevados que caracterizam os touros considerados mais bravos e que existe uma relação entre aquelas hormonas. Isto é o máximo que lhe posso adiantar dado que o Artigo se encontra em fase de tradução não tendo ainda sido publicado.
Um touro sente ou não, dor quando é picado?
Claro que sente, não vale a pena escamotear a questão, o touro é um mamífero tem sistema nervoso central e periférico, a questão está em saber qual é o limiar da dor, isto é, qual é a sua sensibilidade à dor. Por isso é importante saber o que entendemos por dor, que é vista como um fenómeno multidimensional que envolve aspetos fisiológicos, sensoriais, afetivos, cognitivos, comportamentais e socioculturais. É influenciada pela memória, pelas expectativas e pelas emoções, além de factores como: condições socioeconómicas, pensamentos, contexto cultural, sinais vitais, historial médico e estratégias de confronto entre outros aspectos.
Justamente por ser uma experiência que compreende uma variedade de domínios, a sua mensuração é ampla e complexa. E, convenhamos que alguns aspectos que a referenciam ultrapassam o contexto animal.
Assim, a sua abordagem num touro de lide deve ser feita com extremo cuidado, estamos a falar de um animal selecionado para a lide, mantendo a sua ancestralidade, não de uma pessoa ou de qualquer outro animal.
Ao sistema límbico cabe a modulação da resposta comportamental à dor que obviamente, varia de indivíduo para indivíduo.
Tendo em vista obter alguns esclarecimentos sobre esta matéria, foi também conduzido um estudo sobre os níveis de GABA, Serotonina, Dopamina, Adrenalina e Noradrenalina em touros de lide e em bovinos produtores de carne sob Stress que resultou num Artigo algo complexo que não vou aqui dissecar, contudo importa recordar que a analgesia, elimina completamente muitos dos impulsos da dor sendo que, os sistemas de modulação da dor partilham muitos neurotransmissores e que, os sinais anti-nociceptivos descendentes, serotonina e noradrenalina, bloqueiam os sinais da dor impedindo-os de atingir o cérebro, por outro lado, o sistema nervoso simpático controla as reacções de “fuga ou luta” aumentando o estado de vigilância, dimanando daqui, que as catecolaminas (adrenalina, noradrenalina e dopamina) são incumbidas de pôr o animal em estado de alerta, preparando-o para lutar ou fugir.
Considero relevante frisar que o nível médio de adrenalina obtido foi de 19475 ng/L mas que apareceram valores de 117268 ng/L, extraordinários mesmo em touros de lide se considerarmos que devem ser ponderados os rápidos processos catabólicos destas substâncias e que, a dor persistente e o Stress permanente, adaptam os sistemas de modulação da dor devido ao circuito de inibição recíproca dos neurotransmissores. Os mecanismos fisiológicos de sobrevivência responderam eficazmente ao Stress nos touros de lide, que pela sua natureza é exponencial.
Todos nós sabemos que em casos de luta pela sobrevivência, por exemplo em guerras, muitos ferimentos não são sentidos na refrega do combate, a adrenalina mascara a dor.
A neurofisiologia pode explicar a inibição de dor em processos
traumáticos durante a lide, existem até, autores espanhóis que afirmam que o limiar de percepção da dor foi determinado através dos níveis de β-endorfina, verificando-se que aquele limiar é muito alto.
Reparei que a dada altura referiu os bovinos produtores de carne, mansos portanto, até que ponto o touro de lide é diferente?
A Raça Brava de Lide (RBL) é pela sua função e fenótipo, extraordinariamente diferente das Raças de bovinos produtores de carne (BPC), considera-se aquela, de maior proximidade ao ancestral Bos primigenius.
Os BPC sofreram entretanto, alterações genéticas e nutricionais que confluíram para a sua especificidade de alta produtividade e, docilidade.
A divergência é tão acentuada, que interessa saber se algumas estruturas do tronco cerebral e sistema límbico da RBL têm paralelo com as dos bovinos produtores de carne, já que filogeneticamente estão associadas ao Arquiopálio e ao Paleopálio (Evolução das Espécies).
Assim, foi efetuado um outro estudo como o objectivo de comparar as dimensões do Volume Encefálico, altura do Córtex pré-Frontal e as áreas do Tálamo, Hipocampo e Ponte de Varólio na RBL e nos BPC.
Pela observação das Componentes verifica-se que estamos em presença de 2 animais totalmente discrepantes – RBL ¹ BPC.
Se calhar é melhor fazer uma súmula do que já dissemos para não nos dispersarmos e complementar com o que se encontrou, assim, recordemos que foi determinado que a área média da amígdala cerebral na RBL é 42% menor que a dos BPC bem como, o peso médio do encéfalo que é bastante menor na RBL, tendo sido observado que os polos frontais eram estreitos na RBL e arredondados nos BPC bem como a altura do córtex cerebral ao nível dos gânglios da base que é maior nos cérebros dos BPC quando comparados com os da RBL, estes, apresentam a superfície dorsal menos convexa (adelgaçamento do córtex), exibindo o cérebro, um formato de cone trapezoidal contrastando com a forma redonda nos BPC.
Foram ainda achadas diferenças muito significativas em relação ao GABA (ácido γ-aminobutírico).
Na sequência, compararam-se os dados relativos das estruturas antes mencionadas entre a RBL e os BPC confirmando-se diferenças assinaláveis. Corroboraram-se os estudos que aludem à expansão da região pré-Frontal como marco evolutivo e que a domesticação causa alterações no tamanho e volume do cérebro (BPC). Por outro lado, confirma-se que a redução nas áreas pré-Frontais do cérebro está associada à agressividade e também que, o reduzido volume do Hipocampo influencia negativamente a memória (RBL). Ainda, sobre o tronco encefálico se atesta que desencadeia um espectro diferenciado de emoções, dado o comportamento oponível da RBL e BPC.
No cumprimento do objetivo a que nos propusemos, consideramos que, para os grupos estudados, a recolecção de dados obtidos e aferida técnica e cientificamente foi demonstrativa, apresentando um nível estatístico altamente significativo nas mensurações comparativas.
Este trabalho de morfo-parametrização do cérebro e estruturas cerebrais, permitiu concluir que em média, o Volume Cerebral, a altura do Córtex pré-Frontal e a área da Ponte de Varólio são bastante menores na Raça Brava de Lide e que a área do Hipocampo, também em média, é muitíssimo menor nos Bovinos Produtores de Carne.
Da análise de Componentes reconhece-se que entre a Raça Brava de Lide e os Bovinos Produtores de Carne existe uma separação clara e acentuada, considerando-se que, em comparação, podemos estar perante animais neuro-anatomicamente divergentes.
Para melhor visualizar podemos observar o gráfico abaixo que separa a RBL dos BPC de acordo com as estrutura estudadas, sendo nítida a separação:
Nos comportamentos de bravura, verifica-se que existe uma correlação putativa com as estruturas estudadas mencionadas e o comportamento agressivo em touros de lide em oposição à docilidade das raças bovinas de carne.
Embora não tenha sido aludido neste estudo, podemos observar empiricamente as diferenças morfológicas entre a RBL e os BPC, estas, resultando das funções atribuíveis a ambos, destacando-se o formato dos cornos e o desenvolvimento do terço anterior na RBL contra o crescimento do terço posterior nos BPC.
Considerando e analisando todos os dados e elementos, que são extremamente diferentes e estáveis, questiono-me se a RBL será uma subespécie cujos indivíduos se poderiam denominar de Bos taurus bravus.
Para terminar, devo aqui deixar o meu reconhecido agradecimento à Associação Portuguesa de Criadores de Touros de Lide e ao Secretário Técnico do Livro Genealógico da Raça Brava de Lide pela disponibilização de dados, nomeadamente sobre a valoração do comportamento em lide touros analisados.