«Esta é uma cultura exigente», garante Carlos Adão, presidente da Direção da Associação Nacional de Produtores de Mirtilo (ANPM), em entrevista ao suplemento Pequenos Frutos. A entidade, que nasceu em março deste ano, assume vários desafios a curto prazo, entre eles, «a promoção nacional e internacional do mirtilo produzido em Portugal, os seguros de colheita, o acesso a financiamento e apoios, ou a transferência de conhecimento entre os centros de investigação e os produtores».
Entrevista: Ana Clara
Fotos: ANPM
Pequenos Frutos: A associação foi criada em março de 2019. Fale-me um pouco de como começou a ideia de criação da ANPM.
Carlos Adão: A ANMP surge num contexto de interação entre produtores, à margem de reuniões e encontros, onde há vários anos era reiterada a discussão sobre a necessidade de existir uma entidade de âmbito nacional, sem fins lucrativos nem interesses comerciais, que se concentrasse na representação e defesa dos interesses dos produtores, que contribuísse para a divulgação e estímulo ao consumo do mirtilo, que se envolvesse na organização da fileira e de eventos orientados para o desenvolvimento de competências e melhoria da qualidade na produção de mirtilo.Um grupo de produtores decidiu agora avançar com a constituição da associação, que está ainda numa fase inicial, mas que está a desenvolver um ambicioso plano de atividades. Esta equipa inicial é muito heterogénea, contando com o empenho de produtores com áreas instaladas que vão desde 1ha até aos 36ha, e que estão localizados em diferentes pontos do país, do Alentejo a Trás-os-Montes, conferindo um âmbito realmente nacional.
PF: Estão sedeados na Guarda. Porquê esta escolha?
CA: No seio do grupo que fundou a associação, estão alguns produtores do distrito da Guarda, que manifestaram ter condições para acolher a instalação da sede da associação neste município, permitindo uma redução de custos na fase de arranque.Esta escolha justificou-se ainda pelo favorecimento do Interior em detrimento dos grandes centros urbanos, mostrando o empenho da associação em representar todos os produtores, independentemente da sua dimensão ou localização geográfica.No entanto, as assembleias e encontros da ANPM serão realizados em vários pontos do país, onde existam associados e condições de acolhimento destes eventos. A ideia é descentralizar, conciliar as assembleias gerais com outros eventos nacionais e dar a conhecer as explorações dos associados.
PF: Um dos principais objetivos com que a ANPM se compromete passa pela organização da fileira e defesa dos interesses dos produtores de mirtilo. Quais são as necessidades em termos de organização do setor?
CA: A fileira já tem uma dimensão que justifica que os produtores sejam ouvidos na defesa dos seus interesses, na discussão sobre políticas agrícolas, medidas e reformas que têm impacto direto nos produtores de mirtilo.Não podemos continuar a ser meros sujeitos passivos, continuando confrontados com grandes dificuldades, que têm contribuído para o abandono de alguns pomares e que podem motivar a regressão da tendência de fixação da população ativa no setor agrícola e, em particular, na produção de mirtilo. A abertura de novos mercados e apoio na celebração de acordos bilaterais, as alterações à lei laboral, a facilitação na obtenção de vistos e autorização de estrangeiros para trabalho sazonal, a promoção nacional e internacional do mirtilo produzido em Portugal, os seguros de colheita, o acesso a financiamento e apoios, ou a transferência de conhecimento entre os centros de investigação e os produtores, são algumas das matérias em que consideramos conveniente a proximidade entre uma representação dos produtores e as instituições que intervêm nesses domínios.Estaremos, por isso, disponíveis e tomaremos iniciativa para fazer chegar as nossas dificuldades e preocupações, junto da tutela, contribuindo para a preparação e avaliação de medidas ou políticas que influenciem os produtores de mirtilo.
PF: Em termos de problemas, quais são os mais prementes atualmente e que se colocam aos produtores?
CA: Há, na associação, produtores com realidades bastante diferentes, quer pela sua dimensão e localização geográfica, quer pelos objetivos, forma de organização e grau de profissionalização. Não obstante os problemas comuns, estas diferentes realidades implicam também dificuldades diferentes, que tocam diversos domínios.Depois de um ano terrível, julgo que já não é surpresa, nem para os produtores instalados, nem para quem pretenda vir a produzir mirtilos, que esta é uma cultura exigente, com diversos problemas, que justificam uma abordagem profissional e um apoio técnico constante.Temos problemas associados aos fenómenos climáticos extremos, até agora atípicos, mas que se tornam recorrentes e que, não só dificultam a previsibilidade do comportamento da fruta, como têm causado significativos prejuízos.Temos problemas associados a pragas e doenças, onde a DrosophilaSuzukiilidera as preocupações dos produtores.Temos problemas associados à comercialização e políticas de preços, típicos de um mercado em ebulição. Este não é um fenómeno exclusivamente português, mas é aqui que devemos intervir e lutar na defesa de condições que sejam justas e dignas para os produtores profissionais e para a proteção dos postos de trabalho que direta e indiretamente já dependem desta cultura.Temos problemas associados à mão de obra sazonal. Esta é uma matéria que justifica uma ampla discussão entre as partes interessadas, pois importa criar instrumentos que permitam uma contratação adequada às necessidades e aos constrangimentos dos produtores.Temos problemas de qualidade, motivados por alguns dos fatores referidos, mas também por menor acompanhamento do pomar, ou ausência de apoio técnico profissional. Temos ainda outros fatores críticos, relacionados com seguros, fornecedores, variedades, certificações, financiamento e apoios, etc. Como em qualquer outra fileira do setor agrícola, existem problemas que o associativismo, por si só, não resolve, mas cuja oportunidade de discussão e a troca de experiências, podem mitigar ou, pelo menos identificar e quantificar, para um melhor enquadramento e futura resolução.
PF:Desafios também os há. Quais se colocam à fileira neste momento?
CA: Todos os problemas enumerados constituem desafios para nós e para a fileira em geral, pois é necessário perceber onde podemos agir e que medidas adotar para minimizar a exposição ao risco.Considero, no entanto, que o maior desafio para a fileira é mesmo a organização entre os produtores. São enormes as vantagens da união dos produtores, seja em associações, cooperativas, sociedades ou outras formas que permitam ganhar escala e, assim, maior capacidade de negociação, mas também a adoção de práticas agrícolas comuns, suporte técnico constante e procedimentos que garantam a excelência na qualidade do mirtilo produzido.
«Alinhamento e amadurecimento»
PF: Como olha para o caminho do setor dos pequenos frutos em Portugal – da produção, à comercialização, exportação – até aos dias de hoje e que radiografia faze da fileira?
CA: Os frutos que compõem o “cabaz”, quando se refere a expressão pequenos frutos, têm realidades muito distintas, mercados diferentes e modelos de organização diversos, pelo que me vou restringir ao caso do mirtilo.A fileira do mirtilo está ainda numa fase de alinhamento e amadurecimento, o que traz uma grande dinâmica, mas também leva a alguma instabilidade e volatilidade nas organizações que intervêm na sua cadeia de valor, principalmente as que atuam na área da comercialização. Surgiram muitos produtores nos últimos 5 anos, algumas dessas explorações começam agora a atingir a plena produção, o que está a fazer disparar o volume de fruta comercializado e o impacto desta fileira na economia nacional, quer pelo valor das exportações, quer pelo contributo social e criação de emprego.É preciso olhar para a fileira com responsabilidade, proteger os produtores, lutar por condições justas e criar um ambiente favorável para a melhoria contínua da qualidade do mirtilo produzido em Portugal.Com a nossa reduzida dimensão no panorama internacional, estando, cada vez mais, esbatidas as janelas de oportunidade e perante a concorrência de países com diferentes obrigações fiscais e laborais, será com base na qualidade, com uma forte estratégia de promoção internacional e com a abertura a novos mercados, que poderemos marcar a nossa posição e defender a produção nacional.
PF: No que respeita ao consumo de mirtilo em Portugal, ainda há muito caminho a percorrer? Falta, na sua opinião, uma verdadeira estratégia que aposte na comunicação e promoção do consumo?
CA: Sim, há muito a fazer. Não há, ainda, nenhuma estratégia na comunicação para o consumo do mirtilo.No trabalho que já tem sido feito na ANPM, “saúde” é a palavra-chave na promoção do mirtilo, pelo que estamos a planear atividades de incentivo ao consumo do mirtilo pela vertente da saúde.Os produtores, as associações, as cooperativas, os comercializadores, têm um importante papel na divulgação do consumo do mirtilo, como parte de uma dieta saudável com reconhecidos benefícios para a saúde.Parece-me essencial definir um alinhamento nacional na comunicação da promoção e estímulo ao consumo de mirtilo em Portugal, integrado na adoção de hábitos de alimentação saudável. Esta comunicação deve ainda estender-se à promoção internacional da qualidade do mirtilo produzido em Portugal, quer nos países que têm já um grande consumo deste fruto, quer em novos mercados com elevado potencial para acolherem a nossa fruta.O mirtilo tem características únicas, que o tornam num snack excelente para consumo em vários contextos. É fácil de comunicar e de introduzir nas dietas das crianças aos idosos, pois, ao contrário de outros alimentos saudáveis, tem um excelente sabor, não necessita de descascar nem de preparar e não tem sementes percetíveis. Há, por isso, um grande potencial e uma tendência de crescimento, que devem ser aproveitados.
PF: Como olha para a produção em particular? Na sua opinião faz falta ainda alguma formação? Se sim, em que aspeto.
CA: A formação é um dos eixos de atuação da ANPM. Só com uma forte capacitação dos produtores e com uma contínua atualização de conhecimentos se pode aumentar a qualidade e quantidade de produção.
Como referi, a produção de mirtilo só é compatível com uma gestão profissional dos pomares e da empresa agrícola, fundamental numa fileira que exige grande rigor e monitorização de variáveis críticas para o sucesso do negócio. A cada ano surgem novos requisitos de clientes, novos produtos, variedades, necessidades de certificação, orientações e procedimentos técnicos, pragas e doenças, que exigem uma formação contínua e constante atualização.Pretendemos, nesta área do acesso ao conhecimento, implementar um centro de recursos multimédia, onde os produtores possam consultar apresentações técnicas dos eventos, manuais, bibliografia específica e vídeos com apresentações e demonstrações.
(continua)
Nota: Entrevista publicada na edição impressa do Suplemento Pequenos Frutos 27, publicada com a revista AGROTEC 31.
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Fonte: Agrotec