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O IPAM convidou especialistas nacionais para identificarem as tendências que vão tomar conta do mercado agroalimentar português já em 2027. Rui Rosa Dias, Docente do IPAM-Porto e investigador responsável pelo estudo, revelou que a próxima década será de transformação para o setor da distribuição, que terá que se aliar ao consumidor na co-criação de produtos alimentares que respondam às suas exigências.
Quem foi inquirido no âmbito deste estudo?
De um total de 24 experts, 62,5% são representativos do setor Privado, ou seja, provenientes de empresas que operam na fileira agroalimentar e florestal portuguesa, com abrangência multissetorial, 12,5% são representativos do setor Público, com destaque para a proximidade, direta envolvência e ‘desenho’ das políticas de governação agroalimentares portuguesas, e por último, 25% provenientes do setor Académico, da Investigação, Desenvolvimento e Inovação, com produção técnica e científica, maioritariamente adaptada e concretizada no mundo empresarial.
Quais foram as principais tendências identificadas para o setor agroalimentar português para 2027?
A primeira grande tendência é que a dimensão Filosofia Agroalimentar deve ser equacionada como parte integrante de um modelo agroalimentar mais completo e holístico, mais verdadeiro e mais focado no consumidor como Ser Humano e não tanto como personagem económica. Adicionalmente, esta nova dimensão – Filosofia Agroalimentar- ao juntar-se aos três pilares universais do movimento Slow Food (alimento Bom, Limpo e Justo), vem confirmar que os fatores Espiritualidade do Alimento, Socialização pelo Alimento e Conhecimento do Alimento, são, de facto, temas emergentes para a próxima década.
A segunda grande tendência aponta para que o Desperdício Alimentar se reduza em 15% até 2027, muito devido, por um lado, ao ajustamento e à consciencialização do comportamento do consumidor, e por outro, pelo maior grau de eficiência logística e da cadeia de abastecimento, tornando-se mais integrada, sincronizada e colaborativa.
Registou-se ainda uma clara tendência com possibilidade e certeza de ocorrência de 88,6%, para que Portugal, à semelhança de outros países no mundo, possa vir a usufruir do destaque da sua Gastronomia Regional como Património Mundial da UNESCO.
“Na hora da compra de um alimento – fresco ou processado – o atributo ‘distância’ será mais valorizado, motivado por um crescente consumo local e por motivos ambientais – carbon footprint.”
O estudo também aponta como tendência a prática de agricultura sintrópica…
Sim. Os produtos oriundos de práticas de Agricultura Sintrópica irão emergir em Portugal num mercado que deseja cada vez mais alimentos verdadeiros. Esta tendência tem uma possibilidade de ocorrência até 2027 em Portugal de 87,5%. Poderão inclusive vir a ser referenciados como produtos de excelência.
Há de facto ‘novos’ métodos de produção e de tratamento de solos, do meio ambiente e das plantas que nos permitirão optar por novos produtos. A Agricultura Sintrópica, muito resumidamente, permitirá a melhor conjugação possível entre atividade agrícola e florestal, associando-as à proteção e melhoramento natural da fertilidade do solo num ambiente de ‘autoadulação’, potenciando a obtenção de produtos e produções de excelência. O impacto destas ‘novas’ áreas permitir-nos-á um maior nível de conhecimento e proximidade com algo que a Humanidade jamais pode continuar a querer controlar: a Natureza e a forma como a vemos, fundamentalmente, como fonte de alimentos. A bipolarização agroalimentar será mais clara: por um lado destacar-se-á o eixo da total naturalidade, e por outro, a alimentação e os alimentos clonados e a laboratoriais. Em ambos os sistemas haverá algo em comum: segurança alimentar o que, como se sabe, não é sinónimo de qualidade e biodiversidade alimentar.
Como é que prevê que o consumidor se comporte perante testas tendências?
No que respeita ao comportamento do consumidor, na hora da compra de um alimento – fresco ou processado – o atributo ‘distância’ será mais valorizado motivado por um crescente consumo local e por motivos ambientais – carbon foot print. A pegada de carbono dos produtos vai ser equacionada pelo consumidor no momento da compra, tanto como o preço e a origem, com uma possibilidade de ocorrência até 2027 de 84,9%.
Para além disso, o prazer e a felicidade à mesa é algo que se poderá vir a materializar até 2027 através do ‘Menu de alimentação confortável’ retratando uma maior atenção que a alimentação tem e terá para aquilo que representa para o bem-estar individual e coletivo. Haverá uma clara valorização dos momentos das refeições, como elos de partilha, de evolução, de amizade e de educação. Estar à mesa em contexto de amigos e família vai ser entendível até 2027 como um fator de felicidade.
Para 2027, perspetiva-se ainda para a agroindústria e para os todos os agentes da cadeia de valor agroalimentar uma pressão do consumidor no sentido de uma maior e inequívoca transparência desde os modos de produção e transformação, até à comunicação. A cocriação e proteção industrial, o segredo das fórmulas e a rotulagem serão temas muito importantes para o alcance da verdade do marketing agroalimentar.
Preveem que o consumo, per capita, de produtos biológicos em Portugal aumente cerca de 10 euros até 2027. Qual estimam que seja atualmente esse consumo?
Com base numa série histórica dos crescimentos do consumo português de alimentos biológicos e, ainda, naquilo que tem sido a evolução deste segmento, quer no contexto mundial, quer europeu, estimou-se que em Portugal o consumo destes produtos viesse a alcançar os 10 euros per capita até 2027. A estimativa aponta para uma duplicação dos atuais consumos, ou seja, Portugal passará dos atuais 5 euros per capita para 10 euros.
Quais são as principais barreiras ao consumo de biológicos em Portugal? Porque é que ainda não consumimos mais produtos biológicos?
As principais barreiras ao aumento do consumo de produtos biológicos são, por um lado, a falta de informação clara dos benefícios deste tipo de alimentos e ausência de conhecimento sobre os princípios da Agricultura Biológica.
Para além disso, existe dificuldade de abastecimento dos mercados: canais com produção nacional, forte dependência das importações, encarecendo muitas vezes os produtos, e a quase inexistência de indústrias que transformem matérias-primas em produtos de maior valor acrescentado.
Outra questão é a deficiente referenciação e opções de gama, assim como linhas e profundidade das categorias dos produtos biológicos nos espaços comerciais convencionais, o mito do preço, que não raras vezes é propositadamente posicionado como ‘preços premium’, mesmo em hortícolas e frutas, quando pelo menos nestas categorias deveria ser precisamente o contrário. Há ainda um certo oportunismo comercial, cujas margens de negócio ao longo da cadeia de valor, não são sinónimo de maiores custos de produção, logísticos e de marketing justificativos de diferenças para o mesmo artigo, por vezes de 100%.
Por outro lado, existe ainda a desinformação propositada proveniente de alguns setores com empresas líderes fortes e que, por opções estratégicas unidirecionais, sem qualquer preocupação pelo consumidor, pelo meio ambiente e pela economia local, desvirtuam as mensagens sobre os benefícios de consumo de produtos biológicos.
O que quer dizer com isso?
Qual a razão de Portugal ser um dos países com maior atraso e menores índices de consumo de produtos biológicos per capita da União Europeia? A ‘pseudo-periferia’ do mercado português, a insuficiência de matéria prima nacional ou o escasso número de empresas com certificado biológico com capacidade de transformação não são argumentos suficientes para um deficit estrutural português neste cluster.
Assistiu-se nas últimas décadas a uma clara tentativa de algumas empresas da agroindústria, por sinal líderes de mercado, em fazer desacreditar que este segmento era promissor em Portugal. A comunicação de mass-market suportada por estratégias above the line – campanhas de publicidade e aposta em grandes meios – foram propositadamente desenhadas a par das estratégias de preços altos para criar um entrave ao desenvolvimento deste negócio em Portugal.
Paralelamente, algumas dessas empresas lançaram-se a este mercado apenas e só para posicionar produto e aproveitar para rejuvenescer portefólios, identidades de marca e refrescar posições. Identificam-se três aspetos desta forma de atuar: falta de agilidade empresarial – estruturas demasiadamente grandes, para adaptar e/ou integrar portefólios e estratégias no sentido de uma cultura de produção e transformação com certificação biológica; aversão ao risco da investigação, desenvolvimento e inovação em mercados agroalimentares ainda muito vistos como mercados-commodities; e, por último, culturas organizacionais e de governação no setor primário muito conservadoras.
As tendências identificadas neste estudo apontam para a crescente consciencialização do consumidor para o impacto do que comem na sua saúde. De que forma é que a agroindústria e a distribuição terão que se adaptar para responder a isto?
A pressão vai ser exercida pelo maior grau de conhecimento e interesse que o consumidor começa a ter na sua alimentação e ainda, por alguma comunidade médica, estar a valorizar cada vez mais, o equilíbrio, a diversidade e a riqueza alimentar como soluções terapêuticas a ter em linha de conta. Na indústria para os próximos dez anos estimou-se que a cocriação possa ser uma das ferramentas facilitadoras de uma maior proximidade de quem consome com quem produz/transforma, esbatendo barreiras e distâncias absolutamente desnecessárias e sem qualquer sentido. O alimento e a alimentação passarão a ter prioridade.
“Qual a razão para Portugal ser um dos países com maior atraso e menores índices de consumo de produtos biológicos per capita da União Europeia? A ‘pseudoperiferia’ do mercado português, a insuficiência de matéria-prima nacional ou o escasso número de empresas com certificado biológico com capacidade de transformação não são argumentos suficientes para um deficit estrutural português neste cluster.”
O estudo revela também que existe uma tendência para a preferência de canais de proximidade e circuitos de distribuição mais curtos.
Na distribuição, os canais irão percorrer três caminhos: diversificar os formatos de lojas, tornando-os mais próximos do cliente e mais pequenos; simplificação de layouts com recurso à tecnologia; e tornar o espaço comercial uma experiência de compra, apelando e estimulando a participação do consumidor na sua ‘viagem agroalimentar’. As rotinas que o consumidor ainda desempenha em loja irão ser eliminadas no espaço de dez anos, libertando tempo e predisposição para a experiência com os alimentos em espaço comercial. Não há margem para dúvidas de que a produção local, a produção regional e a produção nacional terão, agora, um campo fértil para evoluírem. A compra de produtos alimentares frescos diretamente ao produtor vai aumentar. A compra de produtos alimentares diretamente da ‘fábrica’ vai emergir. Vão surgir novos canais.
Que canais são esses?
Com base no estudo, ficou claro que irão surgir mais formatos de mercados da terra, mercados Slow Food, com layouts atrativos, contudo ao ‘ar livre’. Os mercados como o da Associação pela Manutenção da Agricultura de Proximidade, rede já instalada em Portugal, terão tendência a crescer (tal como em França e em outros países do mundo) e a assumir-se como mais um canal. O comércio tradicional local de produtos nacionais terá uma década de ouro pela frente. A ‘pressão comercial’ de novos projetos de rural-urban fringe que chegarão ao mercado português proporcionará o desenvolvimento de um novo canal – principalmente nos frescos e mesmo nos ‘processados’ –, veja-se o caso das padarias artesanais e do investimento feito na recuperação de cereais ancestrais, alavancado na compra direta em contexto de experiência e de naturalidade, como se de um supermercado ao ar livre se tratasse em que se substituirão as prateleiras e expositores, o ar condicionado e as cadeias de frio por árvores, camalhões e cavaletes/tabuleiros de produção hortofrutícola, ovos e de lacticínios.
Entrevista em colaboração com a revista DISTRIBUIÇÃO HOJE