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Massimo Bottura, chef fundador da Osteria Francescana, esteve este ano no Forum for the Future of Agriculture onde perante uma plateia de milhares de profissionais do setor agrícola partilhou a sua mensagem de combate ao desperdício alimentar. Em entrevista à VIDA RURAL contou o que está a fazer para combater este flagelo ao mesmo tempo que tenta devolver dignidade à vida de pessoas em situação de vulnerabilidade social com a organização Food for Soul.
Há quem o chame de ‘game changer’ pelo que está a fazer com a Food for Soul. Revê-se neste ‘rótulo’?
Sou um chef italiano, com um restaurante em Modena, Itália, que abri em 1995 com grandes sonhos. 22 anos depois posso dizer que ainda estou a sonhar sonhos impossíveis. Mas nunca sonhei que seria convidado para falar no Forum for the Future of Agriculture ou estar na presença do Presidente Obama.
Se olharmos para 20 anos atrás, quão frequente era vermos chefs num palco ou a segurar um microfone? Os chefs raramente saíam dos seus restaurantes para falar com o público, ativistas ou políticos. Hoje, os chefs têm uma voz e está na altura de a usar.
Em 2015, na Expo Milan, o tema era ‘Feed the Planet – Energy for Life’. Todos os países chamaram os seus melhores chefs para os representar, mas ninguém lhes perguntou as suas opiniões ou ideias. Queriam-nos apenas para mostrar e interpretar os seus produtos. Como chef italiano, a Expo Milan era uma oportunidade para fazer algo mais do que cozinhar uma boa refeição. O que fizemos? Decidimos alimentar o planeta à nossa maneira.
Que impacto já conseguiram com este projeto? Quantas pessoas já alimentaram?
Os números são apenas isso e deixo-os para os políticos. Eu sou um homem de ação. Mas sei que temos uma população mundial de cerca de 7 mil milhões de pessoas, produzimos comida para 11 mil milhões e todos os anos 33% dessa produção é desperdiçada, quando quase mil milhões de pessoas no mundo são subnutridas.
Vimos a Expo Milan como uma oportunidade para consciencializar para o desperdício alimentar. Vimos uma oportunidade para criar uma comunidade através da cozinha e para alimentar aqueles com necessidades e para mostrar que os chefs são mais do que as suas receitas. Por isso, criámos uma cantina num bairro negligenciado de Milão e chamámos-lhe Refettorio Ambrosiano. Um refeitório é um sítio onde podemos nutrir o corpo e a alma e onde cada um é convidado para partilhar uma refeição.
Através da nossa experiência descobrimos três valores chave neste projeto: a qualidade das ideias, o poder da beleza e o valor da hospitalidade. Todas as manhãs, uma carrinha chegava com alimentos desperdiçados na Expo Milan. 65 dos melhores chefs do mundo juntaram-se a nós e transformaram 15 toneladas de comida desperdiçada em mais de 10 mil refeições durante seis meses. Fizeram sopas, almôndegas, gelado, etc, com tudo o que encontravam.
Estes chefs representaram um exemplo para a próxima geração. Ao trabalhar com chefs foi possível transmitir conhecimento, partilhar receitas e reduzir o desperdício alimentar. Fora desse Refettorio existe um néon que diz ‘No More Excuses’. Cinco artistas doaram as suas obras, 13 designers fizeram uma mesa comunitária única e criámos um espaço lindo para todos porque a ética e a estética andam de mãos dadas. A beleza é o que nutre a alma e é um bem invisível e indivisível. Para além disso é uma linguagem universal para todos.
Eu sou um chef e nos últimos 30 anos aprendi que 50% do sucesso de uma boa refeição tem a ver com o espaço. Quando criámos o primeiro refeitório, sabíamos que a hospitalidade tinha que ser tão importante quanto a cozinha porque não basta servir uma refeição. Os voluntários servem a refeição nas mesas e os convidados prestam atenção à comida que estão a comer, têm uma opinião sobre ela e querem partilhá-la connosco. Tornam-se críticos de comida. Criámos um diálogo e aprendemos que partilhar uma refeição é um gesto de inclusão.
E porque decidiram levar o projeto para outros países?
Para ser totalmente honesto, Milão foi uma experiência. Não tínhamos ideia do que estávamos a fazer. Tudo o que podíamos fazer era aplicar o que tínhamos aprendido ao longo dos anos na Osteria Francescana sobre a qualidade das ideias, o poder da beleza e o valor da hospitalidade. Vimos o potencial de replicar o modelo noutros países e foi por isso que eu e a minha mulher Lara decidimos fundar a Food for Soul.
A Food for Soul não é um projeto de caridade. É um projeto cultural. Precisamos mesmo de mais refeitórios sociais? Precisamos de mais sítios que unam as pessoas à mesa, mais sítios que deem nova vida aos bairros, mais sítios que restaurem a dignidade. Precisamos de mudar a forma como pensamos sobre os ingredientes, nutrição e pessoas.
Depois de Milão fomos para o Rio de Janeiro e fundámos na Lapa o Refettorio Gastromotiva. Depois veio Londres, e Modena, e Bolonha…
No Brasil, por exemplo, não tivemos financiamento de uma única empresa brasileira, apenas de uma italiana, e construímos do zero num dos bairros mais problemáticos do Brasil. Londres, por exemplo, é uma cidade cheia de diversidade, comida e cultura, mas também é uma cidade cheia de desafios e desigualdade. O desperdício alimentar cresce todos os dias e existem preocupações crescentes em relação ao isolamento social e à pobreza alimentar.
Hoje, mais do que nunca, precisamos de projetos sociais focados na inclusão, aceitação e solidariedade. E numa altura em que o mundo está a construir muros, nós estamos a quebrá-los. Há duas semanas [à data desta entrevista, final de março] lançámos o nosso mais recente projeto, em Paris, e os ingredientes continuam a ser os mesmos: a qualidade das ideias, o poder da beleza e o valor da hospitalidade. A beleza não pode fazer a revolução, mas um dia a revolução irá gerar beleza e este é um projeto revolucionário. Chefs de todo o mundo estão a cozinhar a partir de desperdício alimentar e isso é revolucionário. Os nossos voluntários são homens e mulheres, emigrantes, refugiados, pessoas de qualquer religião. Todos são bem-vindos e sentimo-nos como uma família à volta da mesma mesa.
O que é que todos estes sítios têm em comum? As portas destes Refettorios estão abertas. Servem almoços e jantares, dão as boas-vindas a indivíduos e famílias, juntam chefs e voluntários…todos estes refeitórios tornaram-se numa peça central das comunidades onde estão inseridos. E todo o staff destas cozinhas acumulou receitas e conhecimento para conseguir transformar bananas demasiado maduras ou pão duro em refeições nutritivas. O Food for Soul pode mesmo empoderar as comunidades na luta contra o desperdício alimentar e isolamento social.
Todos podem desempenhar um papel e fazer a diferença. Um chef, um estudante, um artesão, um político, um agricultor…todos temos voz para fazer essa mudança. Todos podemos falar e mais importante, agir. Parem de falar! Comecem a agir! Em qualquer lado, em qualquer condição, quanto mais estivermos à volta da mesa, mais alto a nossa voz vai soar, porque a comida é uma ferramenta poderosa para a mudança.
Desperdiçar menos deve passar também por aprendermos que precisamos de menos, ou não?
Esse é um problema diferente. Eu concordo com isso. Desperdiçar menos é muito importante e uma das ‘receitas’ que posso dar às pessoas é comprar produtos na sua época e restaurar as relações com os produtores locais. De certeza que vão comer melhor e desperdiçar menos. Não existem desculpas!
O consumidor está preparado para essa mudança? Para comer o que é local e só o que está na sua época?
Eu acho que o consumidor está preparado. Já o vi em todo o mundo. Para mim é completamente normal. Eu cresci dessa forma e é uma questão cultural. Cresci numa região italiana conhecida por ‘Food Valley’ onde a agricultura, a carne, os lacticínios, etc, são parte da nossa vida diária e onde o meu restaurante se tornou num embaixador para a agricultura e para a produção local.
Claro que há locais como o Brasil que ainda não estão lá. O desperdício lá é maior do que nos Estados Unidos da América e chega a quase 55% do que produzem. Mas na Europa, por exemplo, já estamos a confrontar este problema e estamos preparados para isso
Como é que o projeto está a ser recebido pelas pessoas?
Há pouco tempo fui entrevistado por uma jornalista em Paris que foi bastante agressiva e não acreditava que estávamos lá sem qualquer outra intenção que não cozinhar para as pessoas, porque as pessoas fazem sempre algo por alguma razão…Eu não cresci assim e respondi-lhe de forma muito honesta: como a minha mãe me ensinou, cozinhar não é negócio. Cozinhar é um ato de amor.
O que é que cada um de nós pode fazer para contribuir para esta mudança?
As pessoas adoram falar, de mais até, mas sem falar não há transferência de ideias. Este é um projeto cultural e tu também fazes parte dele. Se entenderes este projeto e falares com outras pessoas talvez este movimento possa ir mais longe. A geração mais jovem entende muito bem este projeto e há pouco tempo um jovem chef escreveu-me a dizer que se demitiu e que vai construir uma cantina social na Suíça. As pessoas mais sensíveis já chegaram lá…o que todos podemos fazer é espalhar a palavra.
E o Food for Soul pode chegar a Portugal?
Eu adorava isso! O meu assistente passa muito tempo em Portugal e adora o país. Mas tanto pode ser Portugal como Canadá ou Grécia. O mais importante é que as pessoas sejam apaixonadas pelo que fazemos e que entendam o projeto. Quando temos este tipo de parceiro é muito fácil fazê-lo.