Combater as resistências a antimicrobianos

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Por George Stilwell

Clínica das Espécies Pecuárias e Laboratório Comportamento e Bem-estar Animal

Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade de Lisboa | Médico-veterinário, PhD, Diplom ECBHM

O combate às resistências aos antimicrobianos[1] é uma prioridade na União Europeia. Aliás, o aumento exponencial de estirpes bacterianas resistentes mesmo às moléculas mais modernas e a crescente taxa de mortalidade por doenças causadas por agentes multirresistentes, faz desta guerra uma preocupação mundial. O número de mortes por agentes infecciosos multirresistentes calculado para 2017 é de 700.000 mortes e as previsões mais recentes referem o número de 10 milhões para o ano de 2050. Assustador? Sim, e, portanto, todos temos de prestar atenção às nossas responsabilidades, começando pelos médicos-veterinários e os produtores de animais.

O combate às resistências aos antimicrobianos tem de ter uma abordagem muito alargada. O conceito de UMA SÓ SAÚDE baseia-se exactamente nesse princípio – o que afecta a saúde dos animais e do ambiente acaba sempre por afectar a saúde humana, e vice-versa. Ou seja, todos temos um papel, maior ou menor, a representar como decisores, prescritores, utilizadores ou consumidores.

Mas comecemos pelo básico. O que são e como surgem as resistências aos antimicrobianos? Podemos ver isto como uma guerra. Desde meados do século passado que os humanos começaram a perceber que há substâncias que matam ou danificam irreversivelmente certos microorganismos (quase exclusivamente bactérias e nunca vírus). Com o advento destes antimicrobianos pensou-se que, finalmente, a Ciência e a Medicina iriam superar e mesmo extinguir certas doenças. Só que subestimámos o inimigo e abusámos e demos mau uso às armas, abrindo caminho para o contra-ataque de que agora nos queixámos.

O que aconteceu foi muito simples – é sabido e natural que ao atacarmos uma população alguns elementos irão procurar criar mecanismos de defesa. A criação destas defesas ou resistências será tão mais fácil quanto maior e mais prolongada for a exposição a níveis sub-letais das armas, o que acontece quando ocorre uso indiscriminado e incompetente.

São, portanto, estes indivíduos sobreviventes que terão mais hipóteses de deixar descendência e de fazer proliferar essa resistência. Para piorar a situação sabemos também que certas bactérias conseguem “ensinar” outras populações de como resistir às nossas armas. Assim, bactérias que nunca contactaram com um antimicrobiano podem adquirir resistência apenas porque lhes foi transmitida essa capacidade. Daí o risco acrescido da criação de bactérias multirresistentes no ambiente, nos animais, nos alimentos e nos hospitais.

Durante algum tempo a ciência e a tecnologia ainda foram disfarçando o cenário, inventando novas moléculas que aproveitavam fragilidades ou atacavam as bactérias por outras portas. Mas até esta estratégia está praticamente esgotada.

Então a primeira conclusão é: temos de reaprender a usar e a controlar o nosso arsenal, para que mantenha ou volte a adquirir o seu poder bélico. Se isto nem é fácil fazer nos países mais desenvolvidos e sensibilizados, imagine-se no resto do mundo. As organizações mundiais ligadas à saúde alertam para o facto de uma grande maioria dos países (110 dos 130 membros da OIE) não tem legislação relevante e completa no sentido de assegurar as condições ideais para a importação, fabrico, distribuição e aplicação das drogas antimicrobianas.

Ou seja, estas substâncias circulam, são compradas e utilizadas como quem compra ração ou silagem para os animais. Para além disso são contrabandeadas e adulteradas de forma que têm muito menos eficácia contribuindo ainda mais para o estabelecimento de resistências. Muitas são, inclusivamente, vendidas pela internet sem qualquer controlo possível.

Mas mesmo de forma legal continua-se a usar mal os antimicrobianos. Duas situações são de destacar.

Primeiro o uso de antimicrobianos como promotores de crescimento. Em 2015 apenas 74% dos países da OIE proibiam esta utilização. Ou seja, ainda há mais de 30 países, e alguns deles grandes produtores de animais para consumo humano, que continuam a usar antimicrobianos no alimento de forma rotineira para conseguir maiores produções, menos problemas e mais lucro.

O argumento de defesa é que estes antimicrobianos são muito diferentes daqueles que são usados para a medicina (quer humana quer veterinária) e que, por isso, as resistências cruzadas serão pouco prováveis. Infelizmente a evidência mostra, cada vez com mais certeza, que isso não é bem assim. De referir que em toda a UE esta utilização é proibida.

A segunda situação é bastante mais grave. Trata-se do abuso e mal-uso dado aos antimicrobianos destinados ao tratamento de doenças animais (e também humanas, mas este não será o local para as discutirmos). Infelizmente é comum ver em explorações de pecuária quantidades enormes de medicamentos a serem usados por pessoal com pouca ou nenhuma formação médica. Nos melhores dos casos existem protocolos de tratamento instituídos por um médico-veterinário, mas que, como é óbvio, não se aplicam a todas as situações, não contemplam excepções ou casos atípicos etc… Dão uma falsa sensação de competência mas são perigosíssimos.

Também é frequente não existirem prescrições (com as devidas instruções) nas explorações, ficando-se na dúvida de como os antimicrobianos chegaram à exploração sem a intervenção directa de um médico-veterinário. O médico-veterinário deve obedecer as todas as regras éticas, científicas e técnicas na prescrição, incluindo, a responsabilização pessoal pela utilização dada ao fármaco prescrito.

Por sua vez, os tratadores ou donos dos animais devem perceber que a utilização dos antimicrobianos tem de obedecer a determinados critérios que apenas um profissional competente e habilitado saberá controlar. Os vendedores (armazenista ou farmacêutico) têm de estar conscientes do seu importantíssimo papel no combate às resistências, não aconselhando terapêuticas ou fornecendo antimicrobianos sem a respectiva receita médica, desta forma garantindo que tudo se processa com proficiência. Só quando cada um fizer, com seriedade e honestidade, a sua parte, será possível realmente inverter o curso desta guerra.

A aprovação na generalidade (a que se espera que se siga a rápida aprovação na especialidade) do Acto Médico-veterinário foi um importantíssimo passo no sentido da redução das resistências bacterianas em Portugal. Como esta legislação será muito mais fácil controlar a utilização e penalizar o abuso e mal-uso dos antimicrobianos. Ao defender e promover o conceito de que apenas sob a prescrição e supervisão de um médico-veterinário será possível usar antimicrobianos no tratamento e prevenção de doenças animais, estaremos a garantir um uso judicioso e prudente de tão importantes substâncias. Primeiro que tudo, esperamos, esta legislação irá reforçar a ideia da enorme responsabilidade dos médicos-veterinários, no sentido da defesa da saúde animal e da saúde pública. Tenho a certeza que estes irão responder com a excelência que é habitual.

Finalmente umas palavras quanto às alternativas ao uso de antimicrobianos, já que deve ser essa a prioridade neste momento. Não interessa reduzir o preço dos anti-microbianos (estimulando cada vez mais o seu uso) ou mesmo engendrar novas moléculas (esperando que se desenvolva as resistências também a estas), mas sim aprender a usar melhor as que temos. Há duas vias por onde podemos ir:

· Favorecer e amparar a imunidade dos animais para que os próprios debelem as infecções, tal e qual acontece na Natureza. Isso consegue-se proporcionando as melhores condições de bem-estar aos nossos animais. Há evidências esmagadoras de que animais mantidos em stress, em dor, em sobre-densidade, sub-nutridos etc… adoecem mais facilmente e, principalmente, desenvolvem e excretam um maior número de estirpes resistentes aos antimicrobianos usados para os manter a produzir. Ou seja, um animal com pouco bem-estar é uma arma em favor das bactérias multirresistentes.

· Promover a biossegurança – se conseguirmos evitar que os microorganismos cheguem às explorações ou aos animais haverá menos ocasião para os combater. Com isto não defendo fechar e isolar os animais do mundo exterior, como se fez e faz nas explorações super-intensivas, já que isso apenas significa isolar animais imunodeprimidos. Os animais devem contactar com agentes infecciosos porque isso ajuda a desenvolver o seu sistema imunitário, mas devemos, obviamente, protegê-los dos agentes mais perigosos.

Decorre actualmente uma guerra que estamos nitidamente a perder. Os inimigos são os seres-vivos mais pequenos do planeta, mas têm mostrado uma tenacidade e resiliência enorme. Façamos jus ao que nos distingue – a inteligência – e aprendamos a usar as armas da melhor maneira em vez de dar tiros de caçadeira para todo o lado. O resultado tem sido inúmeros tiros nos pés.

[1] A utilização da palavra “antimicrobiano” em vez do mais comum “antibióticos” é preferível já que alguns produtos usados no combate a bactérias não são verdadeiramente antibióticos.

Nota: Este artigo foi publicado na edição n.º 26 da Revista Agrotec.

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