–
O cânhamo – uma das variantes da cannabis sativa – já foi amplamente cultivado no nosso país e parece ressurgir agora como alternativa cultural. Com a produção abaixo da procura na Europa, a sua fibra está bem valorizada e Portugal tem boas condições para o cultivo desta planta que gosta de sol e água.
Portugal foi um grande produtor de cânhamo ou cannabis industrial ao longo dos séculos, primeiro em ligação com os Descobrimentos, sendo usado nomeadamente para as cordas das Caravelas, e mais tarde para a indústria têxtil, entre muitas outras valências. Mas tudo isso foi ameaçado por volta dos anos 1930 com o aparecimento das fibras sintéticas, nomeadamente do nylon e mais tarde quase extinto pela pressão social devido ao uso recreativo da planta, pelo elevado nível de tetrahidrocanabinol (THC), a sua substância psicotrópica.
Por isso, “perdemos 80 anos de experiência no cultivo do cânhamo, bem como as variedades nacionais”, afirma Humberto Nogueira. O consultor desta cultura, e que no ano passado também já foi produtor, acompanha a produção de cânhamo de vários produtores no centro e norte do país e considera que “em termos mundiais o interesse na cultura da cannabis vai além da cannabis medicinal ‘tradicional’ e do cânhamo porque, por exemplo na Suíça já é possível encontrar plantações de sementes que têm um muito elevado nível de canabidiol (CBD) que não é psicoativo e tem muitos benefícios para a saúde”.
Plantação de Cânhamo, da empresa Sete Irmas
Crédito: Rodrigo Cabrita
Mas na União Europeia (UE) a cultura que é hoje possível é a do cânhamo (ou da cannabis medicinal) estando incluída na Organização Comum de Mercados Agrícolas (OCM), para evitar que o mercado de cânhamo destinado à produção de fibras seja perturbado por culturas ilícitas de cannabis. Por este facto, estão muito bem definidas as condições de importação de cânhamo e sementes de cânhamo (só certificadas) com vista a assegurar que os produtos em causa ofereçam garantia que o teor de THC é inferior a 0,2%. E a produção de cânhamo pode mesmo beneficiar do pagamento de base desde que cumpra as disposições estabelecidas na lei. (Ver Caixa)
“Há vários produtores de cânhamo no nosso país, aproveitando, principalmente, hastes e sementes, mas também as flores. As fibras são usadas nos têxteis, argamassas leves, papéis resistentes, painéis isolantes e biocombustíveis”.
Assim, há vários produtores de cânhamo no nosso país, aproveitando principalmente hastes e sementes, mas também as flores. As fibras são usadas nos têxteis, argamassas leves, papéis resistentes, painéis isolantes e biocombustíveis. O destino maioritário das flores é o óleo essencial, enquanto as sementes, como não podem ser ressemeadas, são usadas para alimentação humana e animal (particularmente pássaros).
Uma opção amiga do ambiente
Para ver como a cultura se desenvolve no terreno, a reportagem da VIDA RURAL visitou, na segunda quinzena de julho, uma plantação de cânhamo da empresa Sete Irmãs, em terrenos da Ecoaldeia de Janas (Sintra) onde a responsável de gestão e relações públicas nos explicou porque optaram por esta cultura, em modo biológico. “Trabalho há dez anos em agricultura biológica e estou na associação Agricultura e Vida e o Francisco Amaral, outro dos sócios, responsável pela área agrícola, esteve dois anos na Califórnia a trabalhar com cannabis medicinal e cânhamo, enquanto a Lilian Enders Ribeiro, uma alemã que vive em Portugal há alguns anos, tem também muita ligação à Ecoaldeia, como eu”, afirma Rita Oliveira adiantando que “decidimos assim trabalhar em conjunto com a equipa da Ecoaldeia que precisava de cânhamo para material de construção amigo do ambiente, fibra de cânhamo misturada com barro [argamassas leves]para fazer coberturas de casas”.
A plantação que visitámos é, todavia, a mais pequena da empresa – cerca de 300 m² – mas tem também duas plantações de 0,5 hectares em Galamares e em Espinho e outra de 1,5 hectares em Grândola.
As plantações avançaram com a expertise de Francisco Amaral (de férias na altura em que visitámos a exploração) e sob a consultoria de Humberto Nogueira.
Uma planta com muitos usos
Rita Oliveira refere que “ainda estamos a estudar o mercado para perceber todas as utilizações que esta planta pode ter mas são mesmo muitas”, mas, em princípio, a produção de Janas ficará para as argamassas leves na Ecoaldeia, enquanto das outras plantações será para fibra, “embora também estejamos a pensar colher a flor para fazermos experiências de óleo”.
Rita Oliveira
Crédito: Rodrigo Cabrita
As sementes, obrigatoriamente certificadas para garantir que o nível de TGC é inferior a 0,2% foram compradas em França (como em todos os casos de que tivemos conhecimento em Portugal), sendo a Cooperativa Central dos Produtores de Sementes de Cânhamo da Aube, o principal produtor.
Depois das autorizações e comunicações necessárias (Ver Caixa), semearam no início de junho e esperavam começar a colher a partir de 15 de agosto. “Fazemos colheita manual e a planta fica no campo a secar durante cerca de uma semana”.
O espaçamento normal das plantas na produção para fibra é de 10cm, mas na Europa para a produção de flor é apenas de 7cm. “Fizemos tudo com semeador manual e aqui, como vêm, temos rega por aspersão que também é a mais habitual nesta cultura”, mas a responsável de relações públicas da Sete Irmãs refere que “não estamos muito satisfeitos porque a emergência foi díspar”, entretanto com alguns ajustes nos aspersores a situação melhorou. Já em Galamares estão a fazer rega por encharcamento por períodos regulares, “nesta altura de 15 em 15 dias, mas temos de ir vendo consoante o tempo ficar mais quente”.
“O preço está bom”
Rita Oliveira confirma que “há muita procura por cânhamo na Europa, por isso, o preço está bom, mas se a produção aumentar consideravelmente já sabemos que o preço vai descer”, mesmo assim considera que “será uma cultura sempre interessante, pois tem muitas utilizações”.
O cânhamo aprecia terrenos arenosos, “porque não gosta de humidade a mais”, mas precisa de sol e água, afirma a responsável, explicando que “primeiro preparámos o terreno, regámos, deixámos vir as ervas, passámos de novo o trator a cerca de 15cm, semeámos e regámos”.
Rita Oliveira diz ainda que “temos feito algumas fertilizações com adubos biológicos”, adiantando que “a cultura gosta de potássio e fósforo, mas não fizemos controlo de infestantes porque esta é uma planta muito forte, mais forte que as ervas daninhas” e acrescenta: “Outra das razões porque decidimos fazer aqui o cânhamo é porque tínhamos tremocilha antes e a terra precisava de azoto”.
Em Portugal são permitidas 36 variedades, mas a empresa optou por quatro: Futura, Fedora, Felina e Santica”
Em termos de maneio, Rita Oliveira diz que “as mais parecidas são, talvez, o girassol e o milho”, referindo que “o cânhamo pode ser usado como rotação com culturas de inverno”.
Em termos de custos, a responsável adiantou que a instalação ronda os 4.000 a 6.000€/ha, sendo que a semente custou 7€/kg “mas pode ir aos 15 a 20€ e a “densidade de sementeira anda normalmente entre os 40e os 80kg/ha, sendo que aqui foi de 70 kg”.
Legislação e procedimento para produção de cânhamo
Tendo em consideração a especificidade da cultura do cânhamo, que tem um conjunto de condicionantes de ordem legal, o Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP) decidiu publicar uma síntese de legislação e alguns esclarecimentos.
O cânhamo está englobado na Organização Comum de Mercados Agrícolas (OCM), onde, com o objetivo de evitar que o mercado de cânhamo destinado à produção de fibras seja perturbado por culturas ilícitas de cânhamo, são definidas condições de importação de cânhamo e sementes de cânhamo com vista a assegurar que os produtos em causa ofereçam certas garantias no que diz respeito ao teor de tetra-hidrocanabinol (THC).
As sementes de variedades de cânhamo do código NC ex 12 07 99 20, destinadas à sementeira, devem ser acompanhadas do boletim oficial de análise referente a cada lote que comprove que o teor de THC do lote em causa não é superior a 0, 2 %, as variedades devem estar inscritas no catálogo comum das variedades das espécies agrícolas.
Previamente à importação das sementes deve ser solicitado à DGAV o respetivo parecer, devendo para o efeito ser preenchido e remetido o formulário (disponível no site).
A elegibilidade das superfícies utilizadas para a produção do cânhamo está sujeita à utilização de sementes certificadas que, em 15 de março do ano a título do qual o pagamento é concedido constem do Catálogo Comum de Variedades de Espécies Agrícolas e só são elegíveis se o teor de tetrahidrocanabinol das variedades utilizadas não for superior a 0,2%.
Procedimento
- Enviar à DGAV, formulário (disponível no site do GPP. Ver link no final desta Caixa) devidamente preenchido e anexando para cada lote de semente:
– Foto das etiquetas de certificação da semente
– Boletim oficial de análise de THC
- A DGAV, após verificação das embalagens de semente pelo inspetor de qualidade de semente da Direção Regional de Agricultura e Pescas (DRAP), emite parecer sobre o pedido apresentado, comunicando ao requerente esse parecer com conhecimento à DRAP respetiva.
O requerente deve comunicar às autoridades locais PSP e GNR o formulário com o parecer da DGAV.
Produção de Cannabis medicinal avança
Depois da autorização dada pelo Governo em 2014 a uma empresa de origem israelita (Terra Verde) para plantar cannabis medicinal na zona de Évora (no perímetro de Alqueva) e exportar para o Reino Unido para fazer medicamentos, no ano passado mais duas empresas tiveram luz verde para avançar com as suas plantações: outra israelita e uma canadiana.
Sobre os dois projetos israelitas pouco se sabe, mas a Tilray começou no final de outubro de 2017 em Cantanhede a maior plantação de cannabis para fins medicinais em Portugal – com elevado teor de canabidiol (CBD) e baixo teor (inferior a 2%) de tetrahidrocanabinol (THC), que deverá ter cerca de cem mil plantas.
O diretor-executivo da Tilray, Brendan Kennedy, contou na Web Summit que depois de um ano a viajar por todo o mundo, a Tilray escolheu o Parque Tecnológico de Cantanhede, para produzir cannabis e exportar para países que a queiram usar para fins medicinais, como Alemanha, Croácia e Chipre.
Já depois da aprovação pela Assembleia da República, em junho, da utilização da cannabis para fins medicinais, a 1 de agosto a Tilray anunciou o lançamento um processo de recrutamento para a contratação de cem colaboradores num processo decorre até ao final do ano. Em comunicado, a empresa canadiana afirma: “Em Portugal desde 2017, a Tilray vai investir cerca de 20 milhões de euros até 2020 em Cantanhede, numa unidade de produção de cannabis medicinal que servirá para abastecer o mercado europeu”.
A empresa quer realizar, em Portugal, investigação sobre a eficácia da cannabis em várias doenças, através de parcerias com investigadores académicos e hospitalares salientando que “Portugal é um mercado estratégico para a Tilray, assumindo um papel crucial no plano de crescimento do grupo no continente europeu. Neste sentido, estamos a recrutar mais de cem profissionais para integrarem a empresa em Portugal, em várias áreas de formação, com excelentes condições de trabalho”, explica António Vieira, Responsável de Operações da Tilray Portugal, no mesmo documento.