–
O centro de pesquisa da marca de massas Barilla quer liderar a criação de um grupo intergovernamental sobre alimentação e nutrição para promover políticas sustentáveis à escala planetária no combate à fome e malnutrição. A ideia saiu de um congresso de troca de ideias, que teve lugar em Bruxelas para levar a Europa a abrir o caminho.
Bob Geldof encerrou o Forum Internacional de Comida & Nutrição, no passado dia 6, em Bruxelas, com um balde de água gelada. Depois de uma pequena transmissão com as imagens do Live Aid de 1985 – que o músico criou -, Sir Bob Geldof defendeu que o mundo está agora muito pior do que naqueles anos em que milhões estavam prestes a morrer na Etiópia e 40% da população mundial (1,9 biliões de audiência) assistiu ao concerto caritativo, na maior transmissão televisiva até então. “Nós somos como os habitantes da Ilha da Páscoa que vão cortar as últimas árvores da floresta e caminhar, sabendo-o, para a extinção por motivos vãos. O nosso egoísmo consumista está a matar o ecossistema”. E estamos atrasados para encontrar remédios, disse o ativista, cortando toda a esperança.
Alex Thomson, o jornalista do britânico Channel 4 que foi o anfitrião do Congresso, sentiu-se na obrigação de sossegar a plateia: “Juro por Deus que ele estava a sorrir quando saiu do palco”. Até porque o tom geral do Forum organizado pelo Barilla Center for Food & Nutrition (BCFN) foi: É urgente arregaçarmos as mangas e mudarmos para uma produção que alimente toda a gente e ao mesmo tempo salve o planeta da catástrofe. Está na hora de trabalhar, não de entrar em pânico. As palavras fortes foram: ‘ação’ e ‘juntar esforços’.
Este congresso, que se dedicou concretamente a debater Alimentação, Migrações e Sustentabilidade, teve um carácter fortemente político. E foi organizado pela primeira vez em Bruxelas, com o objetivo declarado de envolver a Europa. Entre os oradores estiveram, como já foi hábito em edições anteriores, representantes das Nações Unidas, Think tanks, ativistas, empreendedores, investigadores. E nesta edição participaram também membros do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia. E o comissário europeu para a Agricultura e Desenvolvimento Rural, Phil Hogan, no momento importante em que está em curso a revisão da Política Agrária Comum (PAC). Num comunicado final da BCFN referiu-se a urgência de a PAC dar ênfase a objetivos de sustentabilidade mas também objetivos nutricionais, criando incentivos para uma agricultura sustentável e que promova a alimentação equilibrada. À pergunta direta de Alex Thomson sobre se a nova PAC iria ter em conta a necessidade de incentivar a produção de alimentos saudáveis, Phil Hogan disse claramente que sim. “A União Europeia precisa de uma revolução na forma de apoiar a agricultura sustentável, a alimentação e as migrações”, sustentou Paolo Barilla, vice-presidente do centro de investigação criado pela conhecida marca italiana de massas.
Uma autoridade sem fronteiras
Mas de todas as declarações políticas, e uma notória boa vontade de caminhar para práticas que incentivem a produção sustentável, a mais contundente foi a que saiu da votação quase unânime entre os presentes no auditório, de que devia ser criado um poderoso Grupo Intergovernamental sobre Alimentação e Nutrição, um organismo transnacional, criado à semelhança do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (criado em 1988 sob os auspícios da ONU e que esteve na base de medidas internacionais como, por exemplo, os Acordos de Paris).
Bob Geldof encerrou o fórum, defendendo que o mundo está pior do que quando realizou o Live Aid, em 1985
“Os governos e as instituições deviam criar um grupo de trabalho que se ocupasse das ligações entre comida, nutrição e ambiente, facilitando a partilha das melhores práticas e tomando medidas concretas em relação à sustentabilidade do atual sistema de produção alimentar”, diz-se na declaração final da BCFN. A própria BCFN compromete-se, aliás, a “ajudar a criar um acordo-quadro no seio das Nações Unidas que lidere na criação de políticas globais. Este acordo-quadro poderá servir como um plano de ação para que todos os estados membros atinjam os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”.
Andrea Renda, investigador sénior no Centro de Estudos de Políticas Europeias, um think tank sediado em Bruxelas, foi o primeiro orador do congresso e disse exatamente isso: “Já que estamos num fórum da Barilla vou usar uma metáfora apropriada: temos que passar do esparguete para a lasanha. Ou seja, temos que deixar de fazer as coisas separadamente. Temos que pôr toda a gente junta. O futuro é multidisciplinar”. E qual foi a conclusão deste especialista em políticas europeias?: “É preciso criar uma entidade transnacional intergovernamental e multidisciplinar sobre alimentação, nutrição e sustentabilidade”.
‘Precisamos de aumentar a escala depressa’, disse Barbara Buchner, membro da direção do BCFN. Para eliminar a fome e a subnutrição no mundo em 2030 – um dos objetivos do programa das Nações Unidas – “os sistemas agroalimentares precisam de ser dramaticamente mudados”. Não é possível dar comida a toda a gente e continuar a produzir alimentos da mesma maneira, disse Gerda Verburg, coordenadora do Scalling Up Nutrition (SUN), movimento criado em 60 países – com o patrocínio das Nações Unidas – , cujo objetivo é eliminar as carências alimentares. Estima-se que existam cerca de 3 biliões de pessoas no mundo subnutridas.
Gerda é filha de agricultores holandeses e não imagina um futuro em que a agricultura possa ser feita como no tempo dos pais. “É preciso criar um novo normal no sistema alimentar que crie comida para toda a gente e que preserve o planeta”. É urgente que a agricultura sustentável passe a ser a forma de produção de massa. Mas para que isso aconteça, explicou, há que apelar a iniciativas conjuntas. Outra das sugestões de Gerda foi a de criar um novo capítulo do Codex Alimentarium – o conjunto de normas internacionais para salvaguardar a saúde e a segurança do consumidor – para promover valores também como a qualidade nutricional e a qualidade ambiental. E falta ainda um novo sistema de comércio internacional. “A separação entre agricultura, saúde e ambiente tem que ser deixada para trás”, resumiu apropriadamente Alex Thomson.
Portugal tem as melhores diretrizes alimentares
Um dos instrumentos de aferição do ‘status quo’ no mundo é o Food Sustainability Index, da responsabilidade do BCFN e dirigido por Leo Abruzzese, diretor de políticas públicas da consultora Economist Intelligence Unit (EIU). É a segunda edição do índex (disponível para consulta em http://foodsustainability.eiu.com), com um enfoque na agricultura, nutrição e desperdício alimentar. Leo Abruzzese destacou a existência de três paradoxos, globalmente. Há 1 bilião de pessoas que vai para a cama com fome, enquanto que 1/3 da comida produzida no mundo é deitada fora. Precisamos de muita terra para cultivar, ao mesmo tempo há terra fértil utilizada para outros fins que não a agricultura. E a subnutrição convive com a obesidade.
Mas no que à Europa diz respeito, foram encontrados alguns dados curiosos, nem todos maus. Portugal, por exemplo, destaca-se, juntamente com a Hungria, por ter as melhores diretrizes alimentares. O Velho Continente tem as regras mais exigentes de proteção do bem-estar animal (animal welfare) de todo o mundo. França lidera a redução de desperdício alimentar, tendo implementado uma lei que obriga os supermercados a distribuir os bens alimentares em fim de ciclo. E a Suécia é onde existe o maior grau de apoio aos agricultores. Pelo lado negativo, na Europa, menos de 1% dos agricultores são mulheres e é um sector envelhecido, com a idade média dos trabalhadores agrícolas a ficar-se nos 57 anos.
Boa pergunta é a de como levar os 10 milhões de agricultores (com pouco sangue novo) a aderir ao esforço de mudar rapidamente um sistema agrícola baseado numa exploração com uso de químicos, e muitas vezes nas mãos de multinacionais, para um sistema mais complexo que inclui a biodiversidade, a inovação e em muitos casos fazendo apelo a técnicas ancestrais mais respeitadoras do ambiente.
Para Sebastien Abis, diretor do Clube Demeter, uma rede agroalimentar com 56 membros, é na bacia do Mediterrâneo que todos os problemas existem, empolados. O berço da civilização ocidental está a perder o fulgor por causa da falta de solos férteis, do impacto das mudanças climáticas, da grande pressão sobre os recursos da terra e marinhos e sobretudo, disse, pela “a sensação de abandono e frustração no mundo rural, quando todo o investimento se concentra nas cidades”. Quando toda a gente está a dar destaque às ‘smart cities’ é “no mundo rural que está a força. Os agricultores são os protagonistas do desenvolvimento sustentável”, defendeu. Símbolo da decadência e do paradoxo: no mediterrâneo está a abandonar-se a dieta mediterrânica, recém-consagrada património da humanidade. Agnes Kalibata, presidente da Alliance for a Green Revolution in Africa (AGRA), sublinhou que é preciso investir em África, de forma sustentável e, até, com o objetivo de recolher dividendos. E isto significa travar parte da migração a que os 85% da população africana em pobreza está tentada.
O diretor do gabinete de ligação entre a Food and Agriculture Organization (FAO) e a União Europeia, Rodrigo Montoya, salientou que é preciso levar os agricultores à mudança, encorajar o desenvolvimento de um mundo rural frustrado e oprimido e criar nele condições de vida atraentes. Investir com determinação e com dinheiro. ‘Senão, nos 12 anos que faltam até 2030, os objetivos de sustentabilidade e erradicação da fome (determinados pela ONU) não serão atingidos’.
Mas nem tudo é triste. E há uma energia que vem da iniciativa individual que foi mostrada. Farris Farrage, um egípcio a chegar à meia-idade, com formação em economia e finanças, contou que no meio da sua vida monetariamente bem-sucedida teve uma crise e uma revelação. Decidiu conduzir a sua carreira para a criação de algo de que se orgulhasse. Hoje é o CEO da Bustan Aquaponics [a primeira empresa egípcia a trabalhar em hidroponia que pode conhecer em http://bustanaquaponics.com/our-farm/ . Mas foi uma longa viagem. Farrage começou por visitar o SEKEM, uma sociedade de promoção do desenvolvimento sustentável, multipremiada e que começou em 1977 quando Ibrahim Abouleish cavou um primeiro poço no deserto abrindo caminho para a agricultura biodinâmica nas terras áridas a nordeste do Cairo. Farrage encontrou-se com Abouleish e colheu inspiração. “Criei um novo mindset e percebi que tinha que ter quase um conhecimento de Jedi. Foi um processo muito emocionante”. Hoje diz que não inventou apenas um negócio: “Criei uma comunidade e os agricultores à nossa volta começam a substituir os pesticidas”. Farrage desenvolveu, explica, “uma empresa de produção de vegetais muito nutritivos, que não precisam de terra arável e de apenas muito pouca água, com zero desperdício e que permite aos seus trabalhadores terem uma vida decente e honrosa no nosso país”.
Gunter Pauli subiu ao palco também para falar de milagres. Ele foi um dos criadores belgas da marca de detergentes ecológicos Ecover que em 1991 erigiu “a primeira fábrica sustentável do mercado”. Venderia a sua parte para aplicar na fundação Zeri que se dedica a apadrinhar projetos fora da caixa, que copiem os processos da natureza, integrando todos os desperdícios no ciclo. “Quando se cria um produto tem que se pensar como ele volta ao sistema”. Escreveu o livro A Economia Azul e passou a ser chamado pelos franceses como ‘o Steve Jobs da sustentabilidade’. O que é que ele disse à plateia? Que há dinheiro a ganhar copiando a inteligência da natureza e respeitando-a.
Mas não nos podemos ficar pela conversa, disse Pauli, e deu exemplos. Um deles é algo com que muitas famílias convivem no dia a dia, “fraldas, essa grande desgraça da civilização moderna”. Uns dias antes, a fundação francesa Famae tinha entregue o grande prémio de inovação de um milhão de euros ao projeto de fraldas biodegradáveis desenvolvido pela Dycle, e mais duas startups. O projeto de que Gunter Pauli é embaixador começou em Berlim e tem um ‘desenho’ que ele diz ser uma cópia da natureza. “A fralda feita de material 100% biodegradável é oferecida aos pais. E depois, em vez de ser deitada para o lixo, consideramos que é um bem precioso. Juntando-lhe carvão transforma-se em húmus negro ou terra preta, um potente fertilizante. Por ano, cada bebé é responsável por uma tonelada desta matéria orgânica que poderá nutrir terrenos agrícolas”. Todo o processo já foi testado em Berlim e agora com o dinheiro do prémio irá ser posto em prática como negócio a um nível mais global.