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A Agro.ges, com a coordenação de Francisco Avillez, teve a responsabilidade de elaborar o Relatório Setorial da Agricultura no Roteiro para a Neutralidade Carbónica em 2050, entregue recentemente ao Governo, que aprovou no início de junho em Conselho de Ministros o RNC 2050. Em entrevista à VIDA RURAL, Francisco Avillez assegura que “se se definirem objetivos claros e tivermos políticas adequadas para o fazer, conseguimos ter um contributo que permitirá, no conjunto da economia, pelo menos à partida e em função do que conhecemos, atingir a neutralidade carbónica no futuro”, acrescentando que “mesmo não indo muito longe é possível já ter um impacto positivo na contribuição do setor para a descarbonização da economia”.
Antes de entrarmos no Roteiro para a Neutralidade Carbónica para o setor Agrícola em 2050, gostava de falar do que levou à necessidade de fazermos este roteiro: As Alterações Climáticas. Considera que o setor está preparado?
Acho que hoje em dia está muito mais preparado que estava há uns meses atrás. E isto porque começa já a sentir os primeiros efeitos destas alterações climáticas, que são basicamente três: aumento da temperatura média, maior irregularidade do regime pluviométrico e maior intensidade e frequência de fenómenos meteorológicos extremos. Há consenso em relação a isto mas a maioria dos cientistas, e mesmo dos centros de decisão política, acreditam que isso resulta de uma cada vez maior concentração de Gases com Efeito de Estufa (GEE) e que essa concentração resulta, fundamentalmente, da atividade humana. Isso implica que se tomem medidas no sentido de reduzir essas emissões.
Daí o Acordo de Paris em 2015…
Sim, começaram a ser tomadas uma série de iniciativas internacionais que acabaram por culminar numa forma de compromisso global com o Acordo de Paris.
Um compromisso que aponta para que na segunda metade do século se reduza a possibilidade de a temperatura aumentar mais de dois graus, mas hoje até já se diz que o ideal seria que não aumentasse mais de 1,5 graus. E, para isso, deve ser tomado um conjunto de ações por cada um dos países, que devem definir quais são, e que serão acompanhadas anualmente e avaliadas periodicamente. Por isso cada país tem de estabelecer o seu Roteiro para a Neutralidade Carbónica.
Hoje em dia, a maioria dos países já tem o NIR – o National Inventory Report – que Portugal já tem desde 1995, que, seguindo a metodologia das Nações Unidas, avalia exatamente todas as emissões de todos os setores da economia. É com base nisso que os países aderentes ao Acordo têm vindo a apresentar os seus Roteiros.
No caso da agricultura, o setor já tem vindo tomar a medidas para combater estas alterações, mesmo antes de se avançar com este Roteiro para a Neutralidade Carbónica (RNC 2050)…
Certamente. Até porque uma das preocupações do setor, que não tem a ver só com as alterações climáticas mas também com questões de natureza económica, tem sido no sentido de aumentar a eficiência no uso dos fatores e dos recursos. Esse aumento de eficiência, por si só, é o elemento que permite mitigar os efeitos das emissões. Reduzir as emissões permite sequestrar carbono, em alguns casos e, por outro lado, permite reduzir custos tornando a atividade mais interessante. No fundo é a passagem de um modelo tecnológico intensivo e menos sustentável para um modelo tecnológico sustentável.
Entrevista com Francisco Avidez da AgroGes
@Rodrigo Cabrita
A intensificação sustentável de que muito se tem falado…
Uma intensificação sustentável e não um regresso ao passado. Muitos defendem isso, mas o futuro não é o regresso ao passado, isso é um erro, o futuro passa pelo modelo de intensificação sustentável e que é muito exigente do ponto de vista tecnológico. E tem duas vertentes: Uma cada vez maior eficiência no uso dos fatores, que passa pelas várias práticas da Agricultura de Precisão e a outra é a aposta em práticas capazes de aumentar o teor de matéria orgânica no solo, que permitem sequestrar carbono e aumentar a capacidade de retenção de água no solo. E esses dois aspetos têm implicações grandes do ponto de vista da investigação e inovação.
O que é interessante aqui é que, muito daquilo que vai ser importante para a melhoria dos resultados económicos das explorações, para as tornar mais competitivas, é convergente com a redução das emissões ou o aumento da capacidade de sequestro e, por outro lado, com a adaptação da agricultura às alterações climáticas, que implicam medidas mitigadoras/descarbonizadoras e medidas de adaptação que, no meu ponto de vista, são tão importantes como as outras.
E que já estão a ser tomadas…
Sim, e o que é fundamental é conseguirmos difundir de forma generalizada aquelas que são simultaneamente descarbonizadoras e de adaptação.
Voltando agora então ao RNC 2050, como é que está organizado?
O ponto de partida é a situação atual e o Roteiro prevê o que pode vir a acontecer numa evolução normal da economia, se isso vai favorecer ou desfavorecer as emissões e o que é necessário fazer para que haja um contributo de cada setor para o objetivo de redução das emissões.
No caso que a Agro.ges acompanhou e que eu coordenei, tivemos a responsabilidade da Agricultura e também da Floresta e Uso dos Solos. O que levantou logo algumas questões porque na agricultura não estão incluídas as pastagens.
Tinha falado na possibilidade de alterar isso no relatório final, isso aconteceu?
Em termos de metodologia não foi alterado porque essa é a metodologia que o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC), das Nações Unidas, exige. Mas em termos de apresentação de resultados, e do que cada setor é responsável na prática do ponto de vista das emissões, conseguimos – com o apoio da Agência Portuguesa para o Ambiente (APA) e do Ministério do Ambiente – que os resultados pudessem ser apresentados sob a forma da tal Agricultura, num âmbito mais restrito, e num mais alargado a que chamámos Setor Agrícola, porque tem implicações muito mais interessantes do ponto de vista do que é o setor. E mais interessante ainda seria apresentar os resultados em termos de setor agroflorestal, mas a floresta fica de fora porque funciona como elemento sequestrador, podendo ser usado para compensar o que não se consegue reduzir com as medidas de mitigação.
Assim, o que fizemos foi apresentar resultados para Agricultura e Land Use Change and Forestry (LULUF), e depois para Setor Agrícola [com Pastagens]e Setor Florestal. Assim, as emissões atuais da Agricultura são de cerca de 6,8 milhões de toneladas de CO2 por ano, mas as das LULUF, são 0,9 milhões de toneladas, porque as nossas pastagens são essencialmente pastagens pobres, por isso o total o Setor Agrícola são 7,7 milhões de toneladas/ano.
Entrevista com Francisco Avidez da AgroGes
@Rodrigo Cabrita
Quais são então os principais pontos para a Agricultura no âmbito do RNC 2050?
Procurámos perceber o que pode vir a acontecer nas próximas décadas que tivesse uma influência mais direta no comportamento do setor. E considerámos que os principais drivers seriam: a maior ou menor abertura da União Europeia (UE) em termos internacionais; o comportamento da procura de bens alimentares; a maneira como a PAC vai evoluir e quais vão ser as mudanças tecnológicas em geral e, em particular, aquelas que poderão vir a ser mais interessantes do ponto de vista da descarbonização da economia.
Procurámos então fazer uma leitura do que poderia acontecer considerando o status quo, o cenário ‘Fora de Pista’, admitindo que nada vai mudar, e dois outros cenários – cuja designação não acho muito feliz, mas foi a designação geral que se decidiu que remete para o ciclismo – de ‘Pelotão’ e ‘Camisola Amarela’. Em que para o setor, a minha leitura é no Pelotão será onde vai haver uma preocupação moderada com a questão da neutralidade carbónica e no Camisola Amarela vai haver uma preocupação mais acentuada. Na evolução num e noutro cenário, o fator-chave que considerámos, independente da neutralidade carbónica, que será a maneira como vai evoluir a Política Agrícola Comum (PAC).
No caso do Pelotão considerámos que haveria algumas alterações e ajustamentos, que já estão a surgir no âmbito das propostas de reforma, mas que não iria alterar substancialmente os pagamentos diretos aos produtores que, no fundo, são o núcleo central da PAC, considerando que o que se vai alterar não são tanto os apoios mas a sua composição. No Pelotão essa situação seria então pouco alterada, embora aumentando os apoios para as questões ambientais. Já no cenário Camisola Amarela é nosso entendimento que daqui a três décadas os apoios aos rendimentos vão estar substancialmente reduzidos, assumindo sobretudo a forma de medidas de gestão de risco e de estabilização de rendimentos, e de apoios orientados para o clima, o ambiente e a biodiversidade, para a gestão dos solos e dos recursos, etc… Portanto, isto tem implicações do ponto de vista da viabilidade dos diferentes sistemas de produção.
E como é que isso se reflete nas emissões?
No cenário de Pelotão, só com isso [PAC] não há grandes implicações do ponto de vista das emissões, mantêm-se mais ou menos as mesmas, mas no Camisola Amarela já haverá alguma implicação, porque admitindo que vai haver redução dos apoios ao rendimento, quer das ajudas desligadas quer das ligadas à produção, isso vai ter implicações ao nível do setor pecuário, que é o setor que mais depende desse tipo de apoios, portanto vai haver um ajustamento. E isso levou-nos então a identificar que tipo de alterações tecnológicas e de práticas agrícolas é que podiam ser consideradas de modo a que o setor pudesse ter uma contribuição maior na descarbonização da economia.
Que medidas são essas que o setor agrícola tem de implementar para contribuir positivamente para a redução de emissões de GEE?
Considerámos três grupos de medidas, porque a questão da circularidade também foi tida em conta. Assim: pode haver medidas mitigadoras, sequestradoras e de promoção da circularidade.
Nas mitigadoras, reconhecendo que se está muito no início e por isso não se consegue ainda contabilizar muito bem os seus impactos, tem a ver com a eficácia da alimentação animal, nomeadamente com as questões da digestibilidade e dos aditivos…
Estamos a falar de produção pecuária…
Sim, e fundamentalmente da produção estabulada, cuja alimentação é à base de rações, que é onde o controlo se pode fazer de forma mais fácil e tem a ver com ruminantes e com a questão do metano.
Ainda nas medidas mitigadores temos também uma melhor gestão dos efluentes, que é importante também nos animais estabulados, mas sobretudo na suinicultura, e a Agricultura de Precisão (AP), na medida em que permite uma redução de inputs, nomeadamente dos adubos azotados e não tanto dos fitofármacos, como se possa pensar, porque tem muito maior impacto nos GEE. E convém ainda acrescentar que os adubos azotados têm exatamente as mesmas emissões quer sejam orgânicos ou sintéticos e às vezes até mais porque para se conseguirem os mesmos resultados tem de se aplicar mais produto, essa é uma das questões com a agricultura biológica.
Ao nível da Agricultura de Precisão consideramos três níveis: o primeiro é o uso de sensores e estações meteorológicas; o segundo são os sensores, estações meteorológicas e cartografia e terceiro é tudo isto mais o software de gestão. No primeiro nível consideramos que é possível poupar cerca de 5kg/ha/ano de azoto, no segundo a poupança é de 10kg/ha/ano e no terceiro é de 20kg/ha/ano.
Entrevista com Francisco Avidez da AgroGes
@Rodrigo Cabrita
E quanto às medidas sequestradoras?
Têm a ver principalmente com a agricultura de conservação ou regenerativa, que passa em grande medida pela compostagem, por melhorar o teor de matéria orgânica no solo, mas também pela mobilização mínima, pela sementeira direta, pelas rotações mais equilibradas e por deixar no solo os resíduos das culturas, e também pode passar pela AP… tudo isto se cruza. E tem implicações também numa área que está fora do âmbito deste relatório, que é a utilização dos combustíveis e da energia elétrica, que no Roteiro é tratada na área da Energia, num subsetor, por isso não temos contabilizadas as emissões com a rega e com os tratores, por exemplo.
Quanto à promoção de circularidade, considerámos principalmente o modo de produção biológico.
E quanto às pastagens e à floresta?
No caso das pastagens o impacto só é significativo se aumentarem consideravelmente as áreas de pastagens sequestradoras. Com essas pastagens fizemos uma estimativa de que se pode ir até a um encabeçamento de 1,6/ha, ficando assim sensivelmente na neutralidade carbónica.
No caso da floresta os incêndios, ou melhor, a redução das áreas ardidas é a questão central. A gestão florestal também tem algum peso, introduzindo de novo os pequenos ruminantes, por exemplo, mas não tem nada a ver com as espécies florestais, só com a redução das áreas ardidas conseguem-se resultados muito positivos, porque os incêndios são responsáveis por grandes emissões, reduzem e atrasam a capacidade de sequestro e de regeneração porque minam a confiança na possibilidade de investimento nesta área.
Voltando às medidas, como as contabilizaram na prática?
Pusemos hipóteses, quer no cenário de Pelotão quer no Camisola Amarela (CA), da quantidade de metano e de óxido nitroso que se conseguiria reduzir e da evolução das áreas associadas a estas práticas – agricultura de conservação, de precisão, pastagens melhoradoras e agricultura biológica – que incorporámos na nossa contabilização, que é isso que acaba por ser o elemento diferenciador principal.
Por exemplo, estimámos que no Pelotão chegaríamos a 2050 com 150 mil hectares de Agricultura de Precisão e no Camisola Amarela teríamos 300 mil hectares, com maior importância do segundo e terceiro níveis tecnológicos. No caso da agricultura de conservação consideramos apenas 60 mil hectares no Pelotão e 180 mil no Camisola Amarela, enquanto nas pastagens melhoradoras fomos um pouco mais longe com 200 mil hectares no Pelotão e 250 mil no Camisola Amarela.
Então os impactos são sempre positivos nos dois cenários?
Sim, mostramos que mesmo não indo muito longe é possível já ter um impacto positivo na contribuição do setor para a descarbonização da economia. O que quisemos mostrar é que se, de facto, houver um empenho muito maior do ponto de vista das políticas, e se apostar cada vez mais em técnicas de precisão, em práticas de gestão e conservação sustentável dos solos e da água é possível ter resultados positivos do ponto de vista da redução das emissões ou do aumento do sequestro, contribuindo para o objetivo de neutralidade carbónica. Estes resultados, obviamente, serão mais positivos quanto mais longe se conseguir ir, nomeadamente quanto mais alterações houver na política em geral, porque vão, certamente, favorecer menos a pecuária e mais outras atividades, porque é a que mais depende dos apoios ao rendimento.
E que resultados serão esses?
De acordo com as nossas projeções, as trajetórias das emissões do Setor Agrícola entre 2020 e 2050 sem nenhumas medidas, considerando só a evolução ‘natural’ que temos assistido até agora, no cenário Fora de Pista (FP) as emissões cresceriam 9,4%, no Pelotão cresceriam 3,1% e no Camisola Amarela é que teriam uma redução de 12%.
No caso das medidas descarbonizadoras consideradas, no Fora de Pista as emissões cresceriam mesmo assim 5,7%, mas no Pelotão conseguia-se baixar 20,8% e no Camisola Amarela reduzir 48,5%, que é já um contributo muito significativo do setor. E se no Pelotão conseguirmos ir mais longe do ponto de vista das medidas conseguiríamos reduzir 32%, enquanto no Camisola Amarela, com maior ambição, a redução poderá ir aos 60%.
Por isso é possível o setor ter uma contribuição positiva para a neutralidade carbónica?
Sim, se se definirem objetivos claros e tivermos políticas adequadas para o fazer, conseguimos ter um contributo que permitirá, no conjunto da economia, pelo menos à partida e em função do que conhecemos, atingir a neutralidade carbónica no futuro.
Mas estamos a falar só de Portugal, mas as emissões são ao nível do Planeta…
Claro, por isso cada país tem de fazer o seu Roteiro. E o âmbito de responsabilidade de cada um tem a ver só com as suas fronteiras….
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Fonte: Vida Rural